Vida no Espírito e Ética: a moral cristã da carne

Espírito e Ética
Dissemos que a comunidade cristã recorda o sentido de nosso corpo, de nosso sexo. Mas a vida cristã é uma vida no Espírito de modo que a moral da comunidade cristã já é aquilo que se vive como obrigatoriedade por causa dessa vida*. Assim, no cristianismo, o inter-dito (norma) só serve para lembrar, fazer memória, da humanização da nossa humanidade, que é o originário (lugar próprio e primeiro) da sexualidade, ou o seu sentido. Pois, sendo a vida de santidade e a vivência da sexualidade do âmbito da graça (dom) do Cristo, a normatização (histórica, social-comunitária) da sexualidade não pode levar a um constrangimento do Espírito. Neste sentido pode-se dizer que Cristo é a norma normans (a norma das normas), compreendendo-se que ele não é uma instituição, mas uma pessoa.
No entanto, uma das dimensões éticas da sexualidade é que a relação carnal é instituinte (dimensão social da sexualidade). Isto é, o dom de si (dado antropológico) está aberto tanto à esponsalidade, como à fecundidade. O dom de si, compreende o dom do seu corpo e pessoa (situada, histórica, ser de relações) expressando-se na esponsalidade, implica na in-corporação ao outro através da aliança. Expressando-se na fecundidade, implica no aparecimento do terceiro (a própria relação - duração - e dela, a possibilidade do filho - o esperado. Note-se aqui as conotações de tempo), que é a própria esperança (as implicações de futuro que tem a sexualidade). Na Bíblia, a linguagem profética dá mais importância à Aliança/esponsalidade, em função da qual está a fecundidade, ordenada à espera messiânica**. Mas a esponsalidade e a fecundidade humana são decorrência da separação da família para se unirem entre si. Esse corte/separação é justamente a possibilidade de que se dê uma relação nova e fecunda. A relação nova é a relação esponsal, algo que se originou da expressão do desejo de ambos na carne. Para que se dê isto, aparece no corte com as outras relações da vida dos esposos, um novo elemento, a castidade.


Esponsalidade e castidade

A antropologia unitária da carne inspirada, escavada do mito adâmico, aborda a questão do aparecimento da relação esponsal a partir da figuração do corte/separação em relação ao divino e aos outros tipos de relações humanas (pais, irmãos e iguais). O imperativo “deixará”, em tom de interdito, quer justamente impedir o incesto, porque aí o sujeito permanece “in-casto”, ligado, indiferenciado. O casto é aquele que foi cortado de pai e mãe para fazer uma aliança com outro. Essa separação – castidade - é um elemento propriamente originário da nossa humanidade, porque na criação já há separação/des-sacralização, como vimos. Logo, a castidade também não é do âmbito do sagrado, mas da santidade. Com isso, nega-se qualquer concepção de castidade como um domínio da carne, como se ela fosse má (o encratismo, auto-controle gnóstico). Assim, compreendemos aqui que a castidade é sempre do âmbito do desejo, pois o outro não está unido/apegado a mim, e sempre incita o (meu) desejo***. O humano é separado do outro e de Deus, em outras palavras, a castidade tem uma fundamentação antropológica. Já o incesto é fusão frustrante  ao passado (pais) ou a Deus (sacralização, negação do humano, subsumir a sexualidade humana no sagrado).

(*) Idéia ricoeuriana de que a ética trata (reflete) da intenção de vida boa com e para os outros, em instituições justas, e a moral trata das normas e leis (institucionalização das expectativas de liberdade e realização humanas, dadas pela comunidade).
(**) O Messias, o salvador, o esperado, virá pela fecundidade das gerações, no tempo vindouro.
(***) Aqui a retenção na sensualidade da carne, no prazer; o desejo de sacralização/eternidade, também aparecem como elementos incastos.

0 comentários:

Postar um comentário